Michael Jordan, ‘The Last Dance’ e o Assédio Moral

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Como um grande fã de NBA, que acompanha com regularidade desde a temporada de 2009, o ‘The Last Dance’ (Arremesso Final, no Brasil) da ESPN/Netflix, excelente documentário, péssima tradução de título, focado na última temporada, mas com diversos flashbacks da carreira do Michael Jordan, tornou-se um conteúdo obrigatório durante esse período de quarenta forçada pela COVID-19.

Mesmo não sendo tão jovem, minhas memórias sobre o Jordan resumiam-se a alguns poucos lances de efeito, parte das olímpiadas de 1992 e o filme Space Jam, então pude ser surpreendido com grande parte do conteúdo apresentado.

O que mais chamou minha atenção no documentário, foi como o Jordan tornou-se gigantesco mesmo em uma era que a internet engatinhava, era absurdamente competitivo em tudo, beirando o obsessivo e doentio, e como isso refletia na relação que ele tinha com os adversários e companheiros de time, que é o pretexto desse post em um blog de conteúdo jurídico com linguagem acessível.

Um ponto que alivia um pouco a barra do Jordan, e que ao mesmo tempo é uma das coisas mais legais do documentário é a relação dele com os seguranças, claramente, com aqueles responsáveis pela segurança existia um relacionamento de confiança, cumplicidade e até afetuosidade.

Certamente, uma das cenas mais legais do documentário é uma aposta ridícula entre o Jordan e o segurança Wozniak (aquele do carismático, datado, cabelo loiro encaracolado parecido com miojo), de quem conseguia jogar uma moeda mais próxima à parede. O Jordan não só foi derrotado nessa disputa de vida ou morte, teve que pagar a aposta (desconfortável com a derrota) como ainda viu o segurança realizar a clássica comemoração dele do “dar de ombros”.

Créditos: ESPN/Netflix “The Last Dance” (O arremesso final)

Claramente, o Jordan fazia uma distinção entre os empregados, sejam do Bulls ou contratados diretamente por ele, tão bem ilustrados nos seguranças, e do que considerava seus pares (jogadores), ou de seus superiores no caso os técnicos e no retratado como vilão do documentário Jerry Krause o general manager do Bulls.

Dessa forma, ao menos o que o documentário nos retrata é que o Jordan não cometia o tradicional assédio moral horizontal descendente com os empregados, ao menos, em nenhum momento aparece ele distratando os seguranças, massagistas ou membros do low staff, seja do Chicago Bulls seja do Birmingham Barons afiliado do time de beisebol Chicago White Sox. Na cabeça do Michael Jordan, aparentemente, sua situação hierárquica no time não permitia (ou simplesmente não fazia sentido para ele) cobrar ou assediar simples trabalhadores.

Porém, com seus colegas de time, a história foi outra e muito diferente. O documentário demonstra o quanto sua relação com seus companheiros (em que pese no lado pessoal fosse praticamente inexistente) era no trabalho absurdamente intensa, agressiva, assediadora, um autêntico Bully, chegando às raias do absurdo de esmurrar o Steve Kerr em um treinamento, um jogador muito menor e mais fraco fisicamente.

A justificativa apresentada pelo Jordan, foi de que ele nunca cobrou de um companheiro, algo que ele mesmo não estivesse disposto a se submeter ou suportar. O fato dele ser mais apto pela genética, formação ou força mental, nunca foi um óbice para ele medir palavras ou atos para direcionar seus companheiros na forma que entendia como correta, mesmo que isso significasse passar a bola de forma propositalmente difícil para um companheiro menos habilidoso, com o único propósito de o expô-lo ao ridículo, ou mesmo socar seus colegas.

Poderíamos interpretar como um assédio moral horizontal, na medida que eram meros colegas de equipe em mesma situação de poder, se motivando, estimulando, provocando, praticando trash-talk, ou, passando do ponto e chegando ao assédio moral.

Entretanto, considerando o status de liderança, melhor jogador, rosto da franquia, da NBA e do basquete, não era bem assim. Mesmo que ele não fosse fisicamente dominante com relação a todos os demais companheiros (por exemplo um pivô como o Horace Grant aparentava ser maior, mais pesado e mais forte), ele claramente tinha uma posição hierárquica dominante com todos os demais jogadores. O bullying praticado, as ameaças constantes, as agressões, eram realmente um comportamento típico do assédio moral vertical descendente, em que um membro mais proeminente assedia um colega de trabalho em uma posição de menos destaque.

Créditos: ESPN/Netflix “The Last Dance” (O arremesso final)

Observamos, ainda, que o Jordan não também teve nenhum receio em praticar o assédio moral vertical ascendente, ele claramente considerava o Jerry Krause como inimigo, e caçoava frequentemente da forma física e estatura do general manager mesmo esse detendo a posição de “chefe de seu chefe”, o Jordan até poderia ter um status praticamente intocável não só no Bulls como na NBA o que limitaria a ação do Krause, mas também é um raro exemplo de que um “subordinado” assediou seu superior com frequência e intensidade.

Esse comportamento, típico dos anos 80/90 não é mais aceitável nos dias atuais. Alguns podem dizer que foi justamente esse comportamento que levou o Bulls à vitória, e, que a vitória seria a absolvição total e justificativa para tudo. Mas não é bem assim. A liderança tóxica não é mais aceitável nem mesmo no mundo dos esportes. Como a vitória acaba exonerando/justificando/apagando muitas vezes achamos que tudo valeu a pena e digno de perdão. É um raciocínio válido, mas outro igualmente válido é de que ele poderia levar o time à vitória da mesma forma somente com o seu desempenho em quadra, cobrando adultos como adultos, sem assediar ou agredir ninguém, vimos um quase mudo Kawhi Leonard liderar seus companheiros em 2019, ou um sorridente Stephen Curry fazer o mesmo em 2015, 2017 e 2018.

Cabe aqui um paralelo importante, no mundo do esporte, nós enquanto sociedade costumamos ter uma tolerância muito maior com certos tipos de comportamentos, que seriam absolutamente reprováveis em outras esferas.

No vídeo acima, vimos um homem adulto, desferindo palavrões (conteúdo sexual e de baixo calão) para outros homens adultos, até mesmo estapeando-os, em busca de motivação para um jogo de futebol de várzea. No título do vídeo e mesmo nos comentários, percebemos, em tom jocoso, como muitos torcedores gostariam de um técnico assim no seu time. Mas alguém consegue transpor tal comportamento como “aceitável” para fora do tal mundo do esporte? Essa mesma cena praticada por um gerente de vendas para sua equipe? Por um editor em sua redação? O pior é que sabemos que esse tipo de comportamento, reminiscente de um passado recente, ainda existe (até no alto escalão do governo vazam alguns vídeos reprováveis…), mas felizmente está em extinção.

Mas por que no esporte ainda temos uma tolerância tão maior em comportamentos que são totalmente reprováveis fora da arena do jogo? Por que a “motivação” pode ser um pretexto para desferir ofensas a torto e direito? Por que é aceitável xingar a mãe do árbitro no estádio? Ofender os atletas do seu time ou adversários em aspectos que não tem qualquer relação com o jogo? Pichar o muro? Invadir o CT? Ameaçar quebrar a perna dos jogadores?

Alguns podem justificar na paixão pelo time, outros que esse é um comportamento que está adstrito àquele espaço controlado e serviria somente para extravasar, tantos outros que os atletas ganham muito dinheiro e por isso estaria tudo bem e tudo seria justificável. Meu ponto, é que uma mera questão de costume, já tem mudado, evoluído e é bastante provável que com o tempo os comportamentos que não são aceitáveis na trincheira do dia-a-dia do local de trabalho, também deixem de ser aceitos no mundo dos esportes.

Os atletas, muitas vezes são alguns dos membros mais proeminentes da sociedade, então acaba existindo um sentimento coletivo de “Schadenfreude” http://(https://pt.wikipedia.org/wiki/Schadenfreude) quando algum desses atletas se dão mal. O ‘The Last Dance’ mostrou o quanto a imprensa foi implacável contra o Jordan na questão das apostas e no comportamento agressivo com seus companheiros de time, chegando ao ponto de ter sido escrito o livro o ‘The Jordan Rules’,  abordado no documentário com o intuito de expor o comportamento reprovável com os companheiros.

O “Schadenfreude” da sociedade com atletas, fica muito claro quando a imprensa divulga, repercute, insiste, reverbera quando eles “pisam na bola”, seja no jogo, seja em uma entrevista, seja por um ato de sua vida pessoal. Nesse momento de quarentena, a quantidade de “lives” com “resenhas” de memórias de causos de atletas e ex-atletas deixa bem claro o quanto nos interessamos por essas personalidades, principalmente, pelos momentos de fraqueza que os humanizam ou mostram que não são seres perfeitos.

Para trazer à nossa realidade do esporte bretão, basta lembrar das famosas farras de Renato Gaucho, Romário ou Edmundo. Como o peso do Ronaldo no final da carreira, foi um dos principais assuntos do dia-a-dia. E se não fosse um tal de corona vírus, provavelmente estaríamos dissecando a vida do Ronaldinho Gaúcho na cadeia como se fosse um Big Brother. E olha que eu nem vou mencionar o Neymar… Já ouvi de muita gente inteligentíssima, que é totalmente contra a violência, EXCETO quando se trata de jogador X, time Y ou árbitro Z… Mas tal comportamento deve mudar, evoluir em futuro próximo.

Olhamos chocados para o que eram as arenas de gladiadores da antiguidade. As comuns brigas ou cusparadas de atletas nos campos de futebol foram minguando e atualmente resultam em punições pesadas. Já evoluímos para considerar inaceitáveis comportamentos racistas ou homofóbicos nas arenas dos jogos. O MMA evoluiu de um “vale-tudo” próximo ao kumite do filme ‘O Grande Dragão branco’ para um esporte (ainda deveras violento) com um conjunto de regras claras e divisão. Torcedores violentos são presos e permanentemente banidos em diversos lugares do mundo. Claro que ainda não chegamos à uma utopia, já evoluímos muito em comparação mesmo com o passado recente.

Atualmente, vemos formas de liderança muito mais saudáveis, jogadores mais inteligentes, engajados, modernos, em todos os esportes e cantos do mundo. Vemos esportistas, mesmo em tempos de exposição permanente, como Roger Federer com uma carreira absolutamente impecável. Na própria NBA vimos como LeBron James, não bastasse uma carreira sem qualquer escândalo, construiu uma escola para 240 crianças em situação de risco, além de frequentemente se posicionar sobre questões políticas relevantes. Cristiano Ronaldo tem uma grave acusação que causa asterisco, mas sua generosidade em doações frequentes não pode ser desprezada.

E para mostrar, que é possível motivar seus atletas, sem ofender ninguém (mesmo que usando alguns palavrões), trago dois trechinhos do goleiro Marcos e do técnico Gregg Popovich.

E tenho total consciência, que muita gente vai dizer ou pensar “que antigamente é que era bom” ou que “tudo é muito chato atualmente”. Entendo e até já compartilhei desse pensamento. Mas o esporte não é sobre bullying, humilhação ou violência. O esporte pode ser sobre força, velocidade, intensidade, habilidade, resistência, dentro de um conjunto de regras preestabelecido, em busca da vitória. É um momento lúdico, que pode servir para o público extravasar, mas somente dentro do que é socialmente aceitável.

Antigamente, muitas empresas planejavam e se estruturavam para ter um chefe agressivo que gritasse com todo mundo para fazer a roda girar e a engrenagem funcionar, o nome disso atualmente é assédio moral, comportamento inaceitável e um risco imenso para as empresas que já perceberam e tem investido recursos em treinamentos e normas para adequar-se, amoldar-se à uma realidade que não tolera mais comportamentos reprováveis de trabalhadores de qualquer escalão. No esporte, ainda não chegamos lá, mas provavelmente chegaremos em um futuro próximo.

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